Publicado em Artigos e livros, Contando a história, Inserção na comunidade, Permacultura

Permacultura democrática, endógena e social

No relato da história da Permacultura publicado neste blog, contamos um aspecto mais geral do Brasil. Hoje seguimos neste resgate. Pensamos que muitas vezes o papel dos mais velhos é trazer a história do que uma cultura viveu, para que os mais novos conheçam. Esta é nossa intenção hoje, nesta postagem que trará mais detalhadamente a permacultura em Santa Catarina, local onde vivemos e atuamos mais intensamente nestes quase 20 anos de permacultura.

Em muitos momentos a permacultura é rotulada como elitista, algo de classe média ou alta. Talvez esta visão seja pautada basicamente pelo fato de que a divulgação de cursos seja o que mais apareça nas redes socais e que realmente abarca este público. Questionamos profundamente esta visão, por que realmente acreditamos que muitos trabalhos com o foco da permacultura aconteçam por ai, em todos o país e poucos deles tem “tempo” para publicar isso no Facebook. Na nossa atuação como permacultores desde 1998, (Jorge) e 2002 (Suzana) participamos de processos e projetos sociais, que formaram muitos permacultores em âmbitos fora das cidades, semeando muitas possibilidades e trabalhos por ai.

Por isso, nesta postagem, que também conta mais um pouco sobre a história da Permacultura no Brasil, vamos resgatar projetos que participamos, em Santa Catarina.

Em 1998 a permacultura começou sua trajetória em Santa Catarina. O pioneiro desta história foi Jorge Timmermann, que trazia na sua história de biólogo, entomólogo e ecólogo a perspectiva de trabalho social com agricultores no semiárido argentino, seja com o controle biológico da doença de Chagas, ou com a proposta de manejo agrosilvopastoril no Programa Algarrobo, por exemplo.

Jorge nos conta um pouco deste início : “Em 1997 André Soares, que andava há dez anos solto pelo mundo e que havia se formado permacultor na Austrália, viaja de volta para o Brasil. Ele faz atividades de difusão da permacultura instado pelo Ali Shariff (Permacultura América Latina) e o Programa Novas Fronteiras da Cooperação (PNFC), ao qual ainda não pertence.  Numa destas palestra/oficina ministrada aqui no sul, em Braço do Norte, conheço o André e o PNFC. Peço para trazer a Permacultura para o sul… a resposta é que o Programa tem um projeto para Amazônia… Em dezembro de 1998 se organiza um PDC Internacional em Manaus promovido pelo PNFC que atua dentro do Ministério da Agricultura. Sou convidado a participar e me formar permacultor pelo Permaculture Research Institute (PRI), neste PDC, ministrado pelo Geoff Lawton e traduzido por André Soares. Ali recebo o certificado assinado por Geoff Lawton, Ali Shariff e André . Logo depois, ainda em 1998 organizo o primeiro PDC no Colégio Agrícola Caetano Costa, em São José do Cerrito e lá se formam professores, auxiliares e atores locais da comunidade cerritense.” .

Este curso iniciou um trabalho importante pelo seu cunho absolutamente social, num município de 10.000 habitantes, de perfil agrícola. O impacto deste trabalho aparece registrado no livro “São José do Cerrito, sua gente e sua História” 2011.

A partir deste curso, um núcleo se forma e começa a trabalhar a permacultura como ferramenta de transformação social, como mostra o texto retirado do livro na foto abaixo.

Neste município foram três PDCs , organizados por parcerias entre a prefeitura, a igreja, sindicatos de trabalhadores rurais, Cedup, etc. Todos dados para agricultores, professores, educadores e atores locais. Fazendo uma conta por cima, só nestes cursos foram cerca de 75 permacultores formados, e ações de impacto como hortas escolares, construções de banheiro seco e cisternas em escolas, APAE, e posto de saúde. Destes permacultores, temos notícias de muitos que seguem se aprofundando e praticando a permacultura, desde aqueles que transformaram suas vidas privadas,  até os que assumiram uma postura política atuante, como por exemplo o Iram, plantador de cebola, que fez a transição para agricultura orgânica, envolveu-se neste modo de vida e produção e hoje é uma liderança numa cooperativa chamada Orgânicos Serrano.

 

Outro projeto no âmbito social no qual tivemos a alegria de participar foi o PRONERA UFSC, entre os anos de 2001 a 2007, envolvendo 4070 educandos. Neste período foram várias fases e enfoques, desde a alfabetização de jovens e adultos no campo, até a formação de jovens e adultos no ensino médio em técnico agrícola. O Pronera funcionava com um tripé: um movimento social que diagnosticava e mobilizava as comunidades e os sujeitos que buscavam escolaridade, chamados educandos, e os possíveis educadores dentro desta comunidade; a universidade que fazia a capacitação destes educadores, e o Incra que administrava os fundos. Na foto abaixo grupo trabalhando numa das capacitações de educação matemática ministradas pela Suzana.

Suzana Maringoni entrou no projeto pelas mãos de Lucia Correa Lenzi professora e coordenadora do projeto CED/UFSC entre os anos (2002 a 2009). Nas palavras da Suzana “o convite feito a mim e à Edla Ramos, era de capacitar educadores no ensino de matemática. Quer dizer, rever que matemática ensinar, como dialogar com jovens e adultos do campo, que fazem muita conta, convivem com medidas de superfície, volume, e finanças, mas muitas vezes se enrolavam e eram enrolados por terceiros. Foi um super desafio, rever que conceitos e como trabalhar. Assim, buscamos a matemática prática, e foi realmente um processo criativo lindo. Na foto abaixo Suzana e o grupo em uma das formações.

Como eu tinha muita permacultura na minha vida, ela foi uma grande ferramenta das oficinas de matemática, seja em planilhas de custos de culturas, onde começávamos a colocar cultivos em consórcios de erva mate +bracatinga+ araucárias, calculo de áreas e construções com orientação solar, etc. Daí foi um passo, para que já no segundo Pronera/UFSC, em conversa com a Lucia e a equipe, em vez de aulas de “ciências”, os educadores tivessem aula de Permacultura, afinal, a pemacultura não é ecologia e ciência aplicada? Assim Jorge ministrou os PDCs do PRONERA ”. Na foto abaixo Jorge dando uma das aulas na capacitação em Permacultura no Pronera.

Entre os anos de 2002 e 2007 foram três PDCs, dados aos educadores, certificando perto de 85 agricultores (a certificação dependia de 100% da frequência, assim, mais educadores participaram das capacitações, mas ao não ter o requisito de presença, não recebiam o certificado). Estes educadores seguiam para suas comunidades e trabalhavam com seus educandos. Ou seja, certamente muitas sementes da permacultura foram lançadas e chegaram a pessoas que nem imaginamos, já que o projeto teve o alcance de 4070 educandos.

Ainda no PRONERA, em 2003, fomos novamente desafiados pela Lucia a montar a grade do primeiro curso técnico com enfoque em agroecologia do Pronera UFSC. A grade foi montada basicamente sobre o conteúdo do PDC, e os bolsistas de mestrado que acompanhavam a implementação do mesmo eram permacultores (Hetel Leepkaln dos Santos, Diogo Alvim, Jean ). Ali também foi dado um PDC para a comunidade escolar, professores, assistentes, líderes comunitários e lideranças locais do MST. Neste projeto também foi realizada numa oficina prática a construção de uma cisterna para coleta de água de chuva e uma Bacia de evapotranspiração nas dependências da escola, com a participação de toda a comunidade escolar. Muito desta experiência está relatada em teses do CED UFSC, e em livros publicados pela editora da UFSC.

O PRONERA _UFSC teve um alcance tão grande, em comunidades que não estão no radar das “mídias”, em uma época onde o acesso às redes sociais não chegavam ao interior, que é muito difícil hoje avaliar como estão e o que vivem estas pessoas, mas em alguns momentos nos chegam retornos de parceiros desta caminhada, que nos localizam no Facebook ou pelo blog e reafirmam o quanto esta formação foi importante para eles.

Outros projeto que envolveu atores locais de comunidades do interior, foi o trabalho de Jorge Timmermann na AGRECO, Associação de Agricultores Ecológicos da Encosta da Serra Geral, que abrangia na época (ano 2000/2001) 300 agricultores em municípios de Santa Cataria, como Santa Rosa de Lima (sede da Associação), Anitápolis, Rio Fortuna, etc.  Na foto acima o início do trabalho do Remi Beckhauser, agricultor da comunidade de Santa Bárbara, em Santa Rosa de Lima. Ali a Permacultura entrou como ferramenta para os agricultores, foram dados 3 PDCs, capacitando em torno de 50 agricultores. Um aspecto interessante foi que durante dois anos Jorge manteve uma rotina de visitas e acompanhamento dos parceiros a cada quinze dias, numa ideia de técnicos agricultores e agricultores técnicos. Temos notícias de vários permacultores dalí que seguem praticando a permacultura e são referências, como o Jorginho Silva de Anitápolis, que recebe constantemente visitas de grupos de universidades tanto de Santa Catarina, como de outros estados , Remi Beckhauser, da comunidade de Santa Bárbara, Dida e família (o filho fez a disciplina de Permacultura na UFSC), da Pousada Vitória em Santa Rosa de Lima. Na foto abaixo, vista da mesma área da foto anterior na propriedade do Remi. Depois de um ano, a mesma área dando seus frutos.

Em 2011 conhecemos, através deste blog, Arthur Nanni e Grasi Willrich, permacultores do sitio Igatu em São Pedro de Alcântara. Ele, geólogo de formação e permacultor que recém havia passado no concurso para professor efetivo da UFSC e ali começou uma parceria e uma grande amizade. Arthur fez conosco a formação para instrutores de PDC em 2011. No seu projeto acadêmico: propor a disciplina de permacultura, e como sonho, talvez uma graduação ou especialização em Permacultura. Na foto abaixo um destes momentos de parceria, Arthur, de chapéu bege e camiseta branca, à esquerda, dando aula num dos PDCs de YvyPorã.

A disciplina já funciona desde 2012, uma turma por semestre (sempre com fila de espera para matrícula), capacitação gratuita e de qualidade.

O NEPERMA, núcleo de estudos de permacultura, fundado em 2013, hoje funciona a pleno vapor, envolvendo além do Arthur, outros permacultores professores de outros centros da UFSC, como Marcelo Venturi (Fazenda da Ressacada), Soraia Mor (arqutetura), Arno Blankensteyn (Biologia), Maria Helena Lenzi (Geografia). Em 2014 foi realizado o Terra Permanente, um projeto para agricultores de 3 municípios de SC. O Terra Permanente durou dois anos- no primeiro a formação com o PDC e visitas às propriedades dos envolvidos e o segundo ano de implementação de ações concretas nos sítios dos mesmos. Uma outra ação muito legal do Terra foi a filmagem das aulas do PDC, que estão disponíveis no canal do NEPERMA no You Tube. Todos os processos destes agricultores foram lindos, mas um jovem, que iniciou o curso com 19 anos, nos dá muita alegria, que é a caminhada do Reinaldo , com sua família, no sítio Moinho de luz, em Rio Fortuna.

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Em 2017 o Neperma realizou um PDC unicamente para professores e técnicos de universidades e institutos federais de educação, capacitando e levando possibilidades de trabalhos em permacultura nestas instituições públicas. Em todas estas iniciativas, coordenadas pelo amigo Arthur, tivemos a honra e alegria de participar. Na foto abaixo esta turma em visita à Yvy Porã.

Retomando o início desta postagem…

Nestes nossos muitos anos de permacultura, calculamos que mais que a metade da nossa atuação esteve envolvida e dirigida à uma permacultura “social”, não elitizada, não midiatizada, não divulgada. Nossa proposta ao publicar o que escrevemos aqui não é um retorno melancólico, nem saudosista, é apenas um registro de experiências vividas, que nos trazem muitas alegrias e aprendizagens. Mas fundamentalmente queremos compartilhar que esta permacultura existe, ela é real, endógena, democrática e tem muitos caminhos.

PS- Convidamos os leitores que conheçam trabalhos de permacultura nesta linha, que publiquem aqui nos comentários as referências.

Autor:

Um casal de permacultores participantes de um projeto coletivo, construindo sua casa, seu espaço e a sustentabilidade..

5 comentários em “Permacultura democrática, endógena e social

  1. Belo relato! Estou iniciando a estudar permacultura e agroecologia e a história de vocês incentiva a continuar nesta busca por uma nova vida. Grato.

  2. Aqui em São Paulo tem um movimento muito lindo, Permaperifa! Permacultura na periferia, vê se pode, Suzana e Jorge! Gosto muito do Lucas Ciolla, levando a Permacultura para a quebrada paulista!

  3. Também fico muito feliz em ler estes relatos, que tanto nos orientam por esses caminhos. Eles nos ajudam a reconhecer as pessoas, saber mais sobre suas trajetórias. Recentemente andei olhando por aí, para ver o que anda acontecendo na rede. Sou um pouco desconectado, e confesso que fiquei assustado com a dimensão de negócio que se transformou isso tudo, com valores altíssimos, etc. Nesse momento fui logo retornando a este blog e novamente me sentindo mais tranquilo. Ao ver essa nova postagem firmo novamente o pensamento, e vejo com mais clareza o caminho a ser seguido. Obrigado à vocês, em especial ao Jorge, que em momento decisivo contribuiu em minha formação, despertando em mim este enorme prazer de planejar e implantar a minha ocupação. Tudo isso estava aqui, desde os acampamentos de criança. O que eu não sabia era que dava pra continuar brincando depois de adulto, e o que é melhor, poder conversar com as outras pessoas sobre isso, ajudando talvez, a despertar nelas o mesmo prazer.
    Um abraço e obrigado.

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